

Capítulo 4 – Apartamento 301: O que Não se Vê
O 301 era o apartamento mais quieto do prédio. Quieto demais.
Por fora, as janelas sempre fechadas. Por dentro, o som dos computadores ligados dia e noite. O ar condicionado nunca desligava, criando um clima artificial, como se o tempo ali tivesse parado.
Jonathan morava ali desde o início da pandemia. Veio de Brasília às pressas, depois de enterrar os pais e a irmã. Não conseguia mais ouvir o sotaque da cidade natal sem sentir dor no estômago. Desde então, passava os dias em home office, conversando com telas, planilhas e e-mails. E à noite, bebia em silêncio.
Caio, seu primo de 19 anos, ocupava o quarto dos fundos. Nerd desde sempre, tímido quase ao ponto do autismo, montara um sistema de vigilância clandestino com câmeras minúsculas instaladas em pontos estratégicos do prédio. Dizia que era “pra segurança”, mas sabia que havia algo de obsessivo naquilo.
Rodrigo, 24, dividia o quarto com Jonathan. Era estudante de Direito, prestes a se formar. Mas o maior julgamento que enfrentava não estava na faculdade – e sim no espelho. Desde a adolescência, carregava um conflito interno que agora, entre paredes trancadas, começava a ganhar forma, nome e coragem.
Aquela quarta-feira estava especialmente densa.
Na cozinha, Jonathan acendia o fogão com a mesma mão trêmula que segurava o isqueiro. O barulho do gás ativava memórias que ele preferia evitar. Mas a rotina o mantinha de pé.
No quarto escuro, Caio monitorava os corredores do prédio. Na tela, ele viu:
- Ricardo saindo do 202 com a camisa amarrotada.
- Aline ajustando o cabelo no espelho do hall.
- Os moradores do 502... parados no corredor. Como estátuas.
— Eles sabem — murmurou Caio, anotando algo num caderno de capa preta.
Rodrigo saiu do banheiro com a toalha enrolada no corpo. Parou diante do espelho da sala.
Olhou-se. Longamente.
Depois, sem dizer nada, pegou a tesoura da gaveta do armário e caminhou de volta pro quarto.
Jonathan viu, mas não falou nada.
Porque no 301, todos sabiam respeitar os silêncios alheios.
Mas naquele dia, os silêncios estavam prestes a se romper.
O som da tesoura ecoou como uma pequena rebelião.
Rodrigo trancou a porta do quarto e encarou o espelho de corpo inteiro. Os olhos estavam firmes. As mãos, nem tanto. O reflexo mostrava alguém que ele reconhecia em partes. Um corpo que já tinha sido chamado de muitas coisas, por muita gente. Mas nunca por ele mesmo.
A primeira mecha caiu com um estalo seco no chão.
Depois outra.
E outra.
Até que não havia mais o cabelo longo que fazia questão de esconder nas audiências online. Até que só restava o rosto cru, limpo, vulnerável. Pela primeira vez, Rodrigo se viu.
E o silêncio do apartamento não pareceu hostil — foi cúmplice.
Jonathan apoiou o copo vazio na mesa de centro, ao lado de um cinzeiro com pontas de cigarro amassadas, mesmo que ele não fumasse. A TV continuava ligada no mudo, enquanto a luz da tarde invadia o apartamento com aquela cor amarelada que só o Rio sabia ter, mesmo nos dias de luto.
Ele se levantou devagar e foi até a estante.
Lá estavam as caixas. Ainda com a etiqueta da mudança. Ainda fechadas, como se abrir uma delas pudesse deixar o vírus escapar de novo.
Puxou uma. Abriu.
Dentro, as lembranças se comportavam como sobreviventes: uma fotografia dos quatro juntos num churrasco, a camisa do time do pai, uma receita de bolo escrita à mão pela mãe. E o envelope.
Branco. Simples. Com a letra da irmã.
"Vai saber."
Só isso.
Não dizia o quê, nem quando. Mas dizia tudo.
Jonathan passou os dedos pela caligrafia com cuidado, como se pudesse tocar nela mais uma vez. Não teve coragem de abrir. Não ainda. Aquele envelope era um futuro que ele ainda não sabia se queria alcançar.
Do outro lado da porta fechada, Rodrigo se olhava no espelho como quem decifra um segredo antigo. A luz amarela do quarto tocava sua pele com suavidade, e o reflexo devolvia uma imagem que não causava mais estranheza — causava desejo.
Ele estava de camisa preta, ajustada ao corpo, botões perolados entreabertos, revelando o início de um peito firme. A calça, escura e justa, moldava as pernas com precisão. O cabelo recém-cortado deixava a nuca exposta, onde ele sentia, com a ponta dos dedos, a vibração de estar exatamente onde queria.
Respirou fundo.
O coração batia forte. Não de vergonha. De excitação.
Era a primeira vez que se olhava como homem. E queria-se. Desejou-se ali mesmo, com a força de quem esperou anos para se tocar com liberdade.
Passou as mãos pelo próprio peitoral, devagar, como quem dança consigo mesmo. Um movimento pequeno, mas íntimo. Um rito secreto. Um flerte com o espelho.
— É isso — sussurrou, entre os dentes.
O medo ainda estava ali, no canto da boca. Mas o tesão por si mesmo era maior. Tesão de existir, de ocupar, de não se esconder.
Abriu a porta.
O silêncio da sala não o assustou. Era como se todo o prédio prendesse a respiração.
Caio olhou para ele, petrificado. Os olhos demoraram mais do que o habitual. Jonathan, ainda ajoelhado no chão, com o rosto molhado pelas memórias, virou-se devagar.
Rodrigo não recuou.
— É assim que eu quero ser visto agora.
Disse como quem termina um feitiço. Voz baixa, mas quente. Uma lâmina de veludo.
Jonathan não respondeu. Apenas assentiu, como quem reconhece a coragem.
E naquele instante, o 301 transbordou. Não de palavras, mas de presença.
Rodrigo não apenas se mostrou. Ele aconteceu.
No canto escuro do quarto, Caio não piscava há minutos.
As imagens do circuito interno rodavam em loop, mas algo chamou sua atenção. Um novo vídeo, marcado automaticamente como "atividade incomum", começava com o corredor do segundo andar vazio... e então, surgiam eles.
Os moradores do 502.
Vestidos de azul bebê desta vez, com luvas metalizadas e um tablet transparente nas mãos. O homem lia algo na tela e ria baixo. A mulher carregava uma pasta fina e vermelha. Pararam diante da porta do 302.
Caio deu zoom.
Ela tirou um papel do envelope, colou com fita crepe na porta do apartamento e sussurrou algo inaudível para a câmera — em mandarim, ele deduziu.
Depois, saíram como se não tivessem estado ali.
Caio pausou. Ampliou. Leu o papel com dificuldade.
"Você sabe o que esconde atrás da fé."
Seu coração disparou.
Salvou o vídeo com o nome: “502_Mensagem302”
Lá fora, os sons do prédio seguiam abafados, mas algo estava mudando. Algo se remexia nos corredores, nos espelhos, nas certezas. Caio sabia. Rodrigo também. Jonathan, talvez.
E no andar abaixo... no 302...
O silêncio da fé estava prestes a ser interrompido.