Capítulo 5 – Apartamento 302: O Peso do Sagrado

Gustavo trancou a porta do banheiro com cuidado, como quem fecha a entrada de um pecado. O clique da fechadura soou como um selo — o mundo de fora, agora suspenso. E dentro, só ele. E o que não podia ser dito em voz alta.

Apoiou as duas mãos na pia e ergueu os olhos para o espelho. O rosto ruborizado. As veias do pescoço saltadas. A respiração presa.
"É só cansaço. É só tensão." Mas ele sabia que não era.

Era desejo. Era memória. Era fantasia.

Na cabeça dele, tudo começava a se embaralhar como um filme sem controle.

Rodrigo surgia de repente — no corredor, de camisa preta justa ao corpo, cabelo cortado rente, a boca semiaberta. Um olhar firme, inteiro. Inacessível e, ao mesmo tempo, convidativo.

Em seguida, Samantha. Sempre ela. Vestido leve, pele dourada, olhos que atravessavam os da igreja.

E então, na imaginação dele — porque tudo ainda estava dentro da cabeça dele — os dois se aproximavam. Um à esquerda. Outro à direita.
Sem máscaras. Sem véus.
Rodrigo tocava sua nuca. Samantha o puxava pela camisa. O corpo dele reagia antes mesmo do toque completo. Ele já era outro.

Gustavo fechou os olhos.

Sentia-se entre eles. No meio de uma dança que jamais vivera, mas conhecia de cor.

As respirações se sincronizavam. Os dedos deslizavam por costas, cinturas, coxas. Os cheiros se misturavam. O tempo parava. A razão também. Só havia corpo.

A mente de Gustavo — reprimida, trancada, treinada para negar — agora implorava para existir ali, com eles. Com ele. Com ela. Com ele mesmo.

A cena, imaginada, escalava em desejo.

Até que ele não pôde mais conter.
Seu corpo explodiu por dentro, como se o próprio coração tivesse descido até o ventre.
E então — o susto.

Abriu os olhos, ofegante.

Estava no banheiro.
Sozinho.
O espelho embaciado.
As calças… encharcadas.

A vergonha veio como onda.

Sentou-se na tampa do vaso, rosto nas mãos, suando frio.

— Perdão, Senhor... — sussurrou, com a voz embargada.

Mas sabia que não era só culpa.

Era choque.
Era prazer.
Era a primeira vez que ele se viu inteiro. Mesmo que só dentro da própria cabeça.

Minutos depois, já recomposto às pressas, Gustavo voltou à mesa pálido.
Sentou-se sem encarar ninguém. As mãos ainda tremiam levemente ao erguer a xícara de café. Guilherme reparou.
A camisa marcada. O olhar longe.
Mas apenas mordeu um pedaço de pão e pensou:
"Não é da minha conta. Ainda."

Jurema, por sua vez, pareceu aproveitar o silêncio para deslizar sutilmente para o tema que rondava a casa há meses.

— Irmã Mônica me perguntou se você já conheceu a filha da Deise, a Talita. Moça boa. Tem temor ao Senhor, ajuda na intercessão, não fala alto, sabe cozinhar…

Guilherme levantou uma sobrancelha.

— Isso é um currículo ou uma proposta de negócio?

Jurema manteve o sorriso tenso.

— É uma indicação de mulher de valor. Que pode te levar pelos caminhos certos. A Bíblia diz: “Não é bom que o homem esteja só.”

— Ué, mas diz também que é melhor estar só do que mal acompanhado.

— Guilherme…

— Mãe.

— Um dia você vai entender. O casamento é a base da família. E a família é a base da fé. Um homem precisa de uma mulher ao lado. Uma que saiba servir. Cuidar. E também… satisfazer. Nos momentos apropriados, claro. Com decência.

Ela falou “satisfazer” como quem pronuncia um feitiço proibido.

Guilherme largou o pão no prato e respirou fundo. O ar parecia mais denso que a fé naquela cozinha.

— Eu não acredito em casamento arranjado. Nem em “mulher de valor” como se fosse título de fruta na feira. Nem em fazer sexo só pra reprodução. E pra sua informação, mãe… já faz tempo que eu não sou virgem.

Silêncio.

Gustavo tossiu, engasgando no próprio gole de café. Jurema arregalou os olhos como se tivesse ouvido um trovão durante a ceia.

— O quê?

— Isso mesmo que você ouviu. Não foi com a Talita. Nem com uma irmã da igreja. Foi com alguém que eu escolhi. Com desejo. Com afeto. Com liberdade.

Ela se levantou num impulso.

— Você está perdido! O mundo te engoliu! Satanás está sorrindo com suas palavras, Guilherme!

— E você acha que Deus tá feliz com as suas?

— Eu oro por você toda noite!

— Ora. Mas nunca me escuta.

Jurema paralisou. As mãos tremiam. O rosto, rubro. Ela parecia prestes a chorar, mas prendeu. Como sempre.

Guilherme se levantou, pegou a mochila no encosto da cadeira.

— Eu vou sair. Preciso de um pouco de ar. Aqui dentro… só tem fumaça de falsidade e moralismo.

Ele parou na porta, virou-se.

— Mãe… você alguma vez já escolheu alguma coisa na sua vida? Ou só obedeceu?

E saiu.

O som da porta se fechando ecoou como uma oração quebrada.

Jurema permaneceu de pé diante da pia, os olhos fixos no copo que lavava sem parar. O mesmo copo. Por minutos.

As palavras de Guilherme voltavam como relâmpagos.

Ela queria gritar. Mas o grito não saía.

Quis lembrar de um momento em que foi, de fato, feliz. Mas a memória era um quarto vazio.

Sabia que seu filho tinha razão.

Mas também sabia que não conseguiria fugir da fé que guiava seus passos há tanto tempo.
Uma fé admitida e vivida sem chances de ser desmentida ou questionada.

E era esse o maior castigo:
Saber e não conseguir mudar.
Sentir e não poder agir.

Ela enxergava uma dor, mas não entendia o porquê daquela provação.
Orava em silêncio para que os céus convertessem seu filho, e que abençoassem os pais.
E repetia:
— Eu tentei ser o melhor de mim, Pai... por favor, devolva e perdoe meu filho.

Guilherme encostou na mureta e soltou o ar devagar. O vento tocava seu rosto como ninguém tinha tocado há tempos — sem medo, sem pressa, sem intenção de corrigir.

Rodrigo chegou logo depois, com duas latinhas de refrigerante.

— Achei que você ainda estivesse aqui.

— Eu precisava de ar.

Rodrigo sentou ao lado dele.

— A gente vem aqui pra lembrar que tem mais mundo do que as paredes mostram.

— Minha mãe acha que vai me salvar. Mas ela não vê que eu só preciso ser ouvido. E amado.

Rodrigo assentiu.

— Você é.

— E você?

— Tô tentando ser eu mesmo. Um dia de cada vez.

E ali, entre antenas, concreto e céu, dois garotos que o mundo tentou sufocar respiraram juntos.

Passos leves interromperam o silêncio. Matheus surgiu com seu boné virado pra trás, seguido por Diogo e Bruno — que Diogo carregava no colo como quem segura o mundo sem medo de deixá-lo cair.

— Ihh, interrompemos? — brincou Matheus, com um sorrisinho, lançando um olhar maroto pra Diogo.

Diogo riu e respondeu:

— Eles só tão se conhecendo melhor. Igual a gente um dia.

Bruno, mesmo pequeno, sorriu.

Matheus se jogou no chão, de braços abertos.

— Cara… esse terraço tem alguma coisa. Um lugar de descompressão.

Rodrigo e Guilherme sorriram. E pela primeira vez em dias, havia leveza no ar.