

Capítulo 3 – Apartamento 201: O Eco das Paredes
A terça-feira amanheceu abafada na Tijuca. Não havia sinal de chuva, mas o céu carregava uma bruma pegajosa que fazia o concreto suar. Dentro do Prédio Pandemia, os corredores mantinham aquele silêncio que parecia respeitar uma tensão invisível – como se o próprio edifício soubesse que havia segredos sendo costurados por dentro das paredes.
No 201, o som baixo do ventilador de teto tentava amenizar o calor e o choro intermitente de Junior. Sofia passava a mão suada pela testa, os olhos avermelhados de uma noite maldormida, enquanto organizava as fraldas no armário do bebê. Ela fingia não notar o atraso de Ricardo – como fazia há semanas.
Ricardo, por sua vez, estava dois andares abaixo. No 202.
A porta entreaberta. Os pés descalços sobre o chão frio de cerâmica. O relógio marcava 10h43 da manhã.
Aline estava de costas para ele, usando apenas uma camisa social branca que com certeza não era dela. O cabelo preso num coque desfeito revelava a curva da nuca, onde uma gota de suor escorria devagar, quase preguiçosa. Ela não se virou ao ouvi-lo fechar a porta. Sabia quem era só pelo som do chaveiro no bolso, o jeito de caminhar, o silêncio seguro que ele carregava ao entrar.
— Você tá atrasado — ela disse, a voz baixa, rouca, mas firme.
Ricardo não respondeu. Caminhou até ela devagar. O apartamento 202 exalava um cheiro cítrico de difusor de ambiente recém-ativado, misturado ao suor de dois corpos que já sabiam de cor o caminho um do outro.
Ele parou atrás dela, próximo o suficiente pra que o calor de sua respiração roçasse a base do pescoço dela.
— A Sofia perguntou alguma coisa? — Aline continuou, sem olhar pra ele.
Ricardo encostou os dedos na cintura dela, e com uma leve pressão puxou-a pra mais perto. O contato dos corpos parecia eletrificar o ar, como se qualquer palavra pudesse ser um fósforo aceso num quarto cheio de gás.
— Ela sente — ele sussurrou, entre o lóbulo da orelha e a mandíbula dela — mas finge que não.
Aline virou-se de repente. Os olhos dela, grandes e escuros, se encontraram com os dele como duas lâminas. A mão dele subiu, devagar, pela lateral da coxa dela, por baixo da camisa branca. Os corpos se fundiram ali mesmo, entre a pia da cozinha e a bancada com uma taça de vinho esquecida da noite anterior. A respiração deles se misturava ao som abafado da cidade lá fora. O tempo parecia suspenso – até que o celular de Ricardo vibrou no bolso da calça jogada no chão.
Sofia.
Ele não atendeu.
Ricardo fechou a porta do 202 com o cuidado de quem não quer deixar rastros. Ainda sentia o gosto do vinho barato na boca e o cheiro de Aline grudado na gola da camisa, agora seca de suor. Subiu os dois lances de escada como quem sobe a si mesmo – degrau por degrau, pensando em tudo que não dizia.
Ao entrar no 201, encontrou a cena de sempre. Mas algo estava diferente.
Sofia estava sentada no sofá com Junior no colo. A TV ligada em um volume quase nulo exibia um jornal qualquer. Ela balançava o bebê com movimentos automáticos, o olhar fixo no nada. O cabelo preso de qualquer jeito, a blusa manchada de leite. Quando escutou a chave girar na porta, ela não virou o rosto. Apenas firmou a mão na nuca do filho e fechou os olhos por um segundo.
— Cheguei — ele disse.
— Eu ouvi.
Silêncio.
Ricardo atravessou a sala como quem caminha por um campo minado. Sabia onde estavam os pontos de tensão: o quadro torto que ele prometeu consertar, o tapete que Sofia detestava, o armário da cozinha onde guardava as taças que não usavam mais. Cada detalhe da casa parecia lembrar que algo se perdia ali todos os dias.
— Fui no mercado, acabei demorando.
Sofia não respondeu. O bebê dormia agora, o peito subia e descia com leveza.
Ela se levantou com cuidado e o levou pro berço. Ao voltar, parou diante dele.
— Você ainda me ama? — perguntou, como se dissesse “passa o sal”.
A pergunta cortou o ar seco da casa como uma navalha. Ricardo arregalou os olhos por um segundo, mas se recompôs rápido.
— Claro que sim, amor. O que é isso agora?
Ela respirou fundo. Os olhos marejados não chegaram a chorar, como sempre.
— Só queria ouvir isso — sussurrou, como quem se despede de algo sem admitir.
No quarto, o choro de Junior voltou, pontual como um relógio desajustado. Ela se virou e foi atender. Ricardo ficou parado no meio da sala, com a camisa ainda grudada nas costas e a culpa mal dobrada no bolso da calça.
Catarina esperou o segundo choro de Junior. Sabia que aquele era o ponto exato em que a casa mergulhava na distração. Sofia trancada no quarto, embalada entre os soluços do bebê e as espirais da própria mente. Ricardo... Bom, ela nunca sabia direito onde ele estava. Nem fazia mais questão.
Vestiu o tênis sem meia, pegou a mochila preta e saiu em silêncio. A porta não chegou a bater – deslizou como um segredo bem guardado.
O corredor do prédio estava abafado, como se guardasse a respiração de todos os moradores. O elevador demorava demais, então desceu pelas escadas. Um andar abaixo, olhou rápido para o 202. A campainha era discreta, mas por trás dela, Catarina sabia que havia alguma coisa viva demais ali dentro. Sentia. Como uma descarga invisível. E odiava não saber exatamente o que.
Lá fora, o calor era sólido. O asfalto parecia respirar com dificuldade, e o ar tinha gosto de ferro velho. Mas o Caio... o Caio era diferente.
Esperava por ela na esquina da lanchonete fechada da Rua Conde de Bonfim, com o moletom cinza que ele usava mesmo no calor — “é estilo”, dizia — e o sorriso torto de quem já tinha aprontado mais do que devia antes dos 20.
— Achei que não ia vir — ele disse, acendendo um cigarro que ela odiava.
— Achei que você ia me dar bolo de novo.
— Nunca mais.
Ela sorriu. Mas por dentro, uma parte dela ainda estava no apartamento 201. O peso do irmão recém-nascido, o cheiro da mãe em colapso emocional, a ausência do pai cada vez mais distante. Tudo isso ficava ali, grudado nas costas dela como um casaco pesado demais pra idade.
Mas naquele momento, tudo era mais leve. Caio segurou sua mão como quem segura o mundo. E ela deixou.
Foram andando até a Praça Saens Peña, os dois escondidos à vista de todos, como um filme que ninguém percebe estar passando.
O quarto estava escuro, mesmo com as janelas abertas. A cortina bege tremulava com o vento morno da tarde, trazendo aquele cheiro de tijolo quente misturado com fumaça de carro. Sofia estava sentada no chão, entre o berço de Junior e a cômoda, com as pernas cruzadas e as costas arqueadas, como se o corpo tentasse se esconder de si mesmo.
Junior dormia, finalmente. E o silêncio, ao invés de acalmá-la, apertava o peito como um abraço sufocante.
Ela levou a mão à testa, suada. Depois ao peito. A respiração estava curta. Um nó na garganta que não descia, uma angústia que ela não conseguia nomear. Era como se o tempo tivesse parado, mas o coração não soubesse disso. Bateu acelerado, descompassado. As mãos tremiam, e ela, pela milésima vez, se perguntou se estava enlouquecendo.
Abriu a gaveta da cômoda. Lá dentro, a cartela dos calmantes estava intacta. Ela odiava tomar. Queria acreditar que podia vencer sozinha. Mas aquele dia... aquele dia era diferente.
Pegou o comprimido e ficou olhando pra ele por alguns segundos. Chorava, mas não fazia barulho. Era um choro maduro, contido, treinado.
Foi nesse instante, enquanto se levantava com dificuldade, que sentiu o cheiro.
Perfume feminino.
Mas não era o dela.
Nem o de Catarina.
Era cítrico, adocicado. Familiar de um jeito incômodo. E impregnava a gola da camisa que Ricardo havia deixado pendurada na maçaneta da porta do banheiro.
Ela fechou os olhos por um segundo. O mundo girou devagar. A dor no peito cedeu lugar a uma clareza cortante.
Não era só a ansiedade.
Era a confirmação.
Ela sabia.
Mas ainda não estava pronta pra dizer isso em voz alta.
Quarta-feira, 16h12.
Ricardo enviou uma mensagem curta:
“Porta destrancada. Te espero. 10 min.”
Aline respondeu só com um emoji – aquele da chama. O que ele sabia exatamente o que significava.
O 202 estava escuro, abafado. Aline usava um vestido leve, florido, mas por baixo dele… nada. Recebeu Ricardo na porta com um sorriso de canto e olhos famintos. O rádio da cozinha tocava uma música antiga da Gal Costa, mas eles mal escutavam.
— Hoje você parece mais… tenso — ela disse, empurrando ele contra a parede.
— Ela sabe.
— Sofia?
Ele assentiu. E a resposta foi um beijo intenso, como se Aline tentasse apagar a culpa com a língua. As mãos dele percorriam o corpo dela com a pressa de quem tenta esquecer o mundo, e os dois se moveram pela sala com os corpos colados, até caírem no sofá, onde os lençóis amassados já denunciavam visitas anteriores.
Depois, enquanto ela se espreguiçava nua no sofá, ele falava devagar, os olhos semicerrados.
— Lembra daquela tarde no Mirante do Rato Molhado, que a gente tomou sorvete no carro e depois começou a chover?
Aline o olhou, surpresa.
— Mirante? Isso foi com a sua mulher, não comigo.
Silêncio. Denso. Incômodo.
— Ah… foi? — ele tentou disfarçar, coçando a barba, mas a tensão já havia pousado no meio da sala.
Aline levantou, pegou o vestido do chão e vestiu com pressa.
— Você anda confundindo demais as coisas, Ricardo.
Antes que ele pudesse responder, um som ecoou do corredor. O barulho das rodas do carrinho de feira, os passos ritmados... e então, o elevador parou.
Ele olhou pelo olho mágico.
Lá estavam eles.
Os moradores do 502.
Com seus trajes absurdos de proteção: macacões brancos plastificados, máscaras N95, viseiras e botas de borracha azul-marinho. O homem segurava uma sacola com gengibre e nabo. A mulher, com um leque cor-de-rosa estampado com pandas, abanava o rosto enquanto falava em mandarim.
Eles cochichavam enquanto observavam a porta do 202. Um gesto com a cabeça. Outro com os olhos. Sorriam discretamente, como quem já sabia de tudo, mas fingia estar apenas curioso.
Aline se encolheu atrás da cortina.
— Eles me dão medo.
— Eles sabem de tudo — Ricardo respondeu, como se falasse consigo mesmo.
O elevador voltou a descer. Lento. Muito lento.
Enquanto isso, no 301, a solidão tinha cheiro de mofo e comida requentada.
Dona Célia, 79 anos, sentada à beira da cama, passava os dedos pelo retrato do marido falecido, como se pudesse ativar alguma resposta do outro lado da moldura. O rádio ligado no volume baixo tocava boleros antigos, e uma panela com arroz esquentava na trempe acesa da cozinha.
O telefone não tocava há dias.
Ela mantinha a mesa posta para dois. Sempre.
A pandemia levara quase todos os seus encontros: os dominós de domingo, as missas da manhã, o salão de beleza da esquina.
Mas o que doía mais era o sumiço do neto.
Prometeu que ligaria. Que apareceria. Que traria álcool gel, máscaras e um “abraço com o cotovelo”.
Não trouxe nada.
Célia olhou para a porta e sorriu de leve, como quem conversa com um fantasma.
— Pelo menos vocês aí de cima... me fazem companhia.
Ela se referia, claro, aos ruídos do andar de cima — gritos abafados, passos apressados, choro de bebê, e às vezes... o som de um beijo disfarçado entre paredes finas.