

Capítulo 2 – O Dia em Suspensão
O sol nasceu tímido naquela manhã.
Mas não era o tipo de manhã comum. Nada mais era.
O prédio acordou sem saber se era segunda, quarta ou domingo.
Sem saber se tomava café na sala ou na cama. Se se vestia ou seguia de pijama.
As janelas, agora com rostos conhecidos, carregavam outro peso.
O peso do “e agora?”.
O silêncio da noite anterior ainda vibrava nas paredes, como se o grito e as sirenes tivessem deixado um rastro invisível.
Dentro de cada apartamento, uma rotina tentava nascer — como um bebê prematuro, frágil, desajeitado.
No 601, Matheus esquentava água para o banho de Bruno enquanto Diogo espiava a última caixa de leite. Não havia mais fralda. Nem coragem de sair para comprar. Pensaram em mandar mensagem para o grupo do prédio, mas não existia grupo ainda. Não existia sistema.
Foi Guilherme, o filho de Jurema e Gustavo, quem teve a ideia. Criou um grupo no WhatsApp com o nome "Moradores do Edifício Oliveira". Colocou quem tinha no contato. Mandou uma mensagem tímida:
"Bom dia, vizinhança. Acho que a gente pode se ajudar por aqui."
A primeira reação foi o vácuo. Depois, vieram as respostas.
"O culto do 302 podia virar live, hein?" "A Aula de zumba do 502 me deu taquicardia!" "Oi, bom dia, sim." "Tem alguém com termômetro sobrando?" "Quem viu o caminhão do lixo passar?" "Preciso de arroz. Troco por papel higiênico."
No 201, Catarina fotografou a janela com luz bonita e postou no story com a legenda: "Reclusa. Mas viva."
No 301, Jonathan respondeu ao grupo com um “Bom dia a todos” e logo depois apagou. Achou que soou formal demais.
No 502, ninguém respondeu. Mas a Sra. Katu deixou um bilhete na porta do elevador com dois ideogramas e um desenho de coração.
O prédio, ainda sem forma, começava a se ouvir de novo. Não por vozes — mas por letras, ícones, emojis.
Era pouco. Mas era o início de algo.
Com todos em casa durante a semana, as rotinas se encontravam — e se esbarravam. No 302, o culto era transmitido pela TV com o volume no máximo. Os louvores ecoavam pelo prédio como se Jurema quisesse evangelizar até as paredes. Gustavo orava em voz alta, e Guilherme tentava fingir que dormia, com o travesseiro sobre a cabeça.
No 502, parecia haver uma aula de zumba improvisada. A música eletrônica competia com batidas de algum outro estilo vindo do 301. Lá, três homens revezavam o banheiro sem ordem ou higiene. A falta da diarista começava a cobrar seu preço. A pia transbordava, o chão era um campo de guerra de cuecas, e ninguém sabia mais o que pertencia a quem. A desordem do banheiro era só reflexo. Por dentro, cada um deles também tentava entender onde terminava o outro e começava o próprio caos.
No 201, Ricardo tentava se enroscar com Sofia no sofá. Ela, de cara fechada, afastava o marido com um olhar afiado. O bafo de cigarro e cerveja não ajudava. Ele não retrucava, mas sua expressão de desdém e as mãos lentas por seu corpo deixavam claro que já tinha um plano — um que Sofia não pertenceria naquele dia.
Enquanto isso, Aline, do 202, já estava uniformizada, descendo as escadas às pressas, a Estudante de medicina, havia sido convocada para apoiar os plantões de emergência de um hospital municipal. Sabia que ainda era estudante, mas já se sentia no front. Com máscara no rosto e um pouco de medo nos olhos, saiu sem dizer nada. Alguém a viu pela janela. Alguém desejou boa sorte em silêncio.
No final do dia, o grupo do WhatsApp ficou em silêncio. As mensagens pararam, a música cessou, o culto terminou, e até as batidas dos vizinhos sumiram. Cada apartamento se recolheu à sua maneira, lidando com suas próprias perguntas sem resposta.
Lá fora, a rua continuava vazia. Mas ali dentro, algo havia mudado.
Não era reconciliação. Nem amizade. Era só o começo de um reconhecimento.
Pela primeira vez, os moradores sabiam que não estavam tão sozinhos. Mesmo que ninguém dissesse em voz alta, todos sabiam onde estavam os outros. E isso, naquele momento, era quase o mesmo que estar juntos.